domingo, 22 de novembro de 2009

Eram três e tantas

Eram três e tantas da madrugada. Seus cabelos ralos e grisalhos caiam sobre seus olhos pequenos de cor de jabuticaba. A expressão inquietante seria percebida por qualquer um, isto é, se houvesse alguém ali além de George Winfrey. Caminhou até o velho fogão bambo devido ao desnivelamento de uma das quatro pernas. A porta do forno mal fechava. Pegou a chaleira exposta na pia ao lado de alguns pratos empilhados e um cinzeiro com algumas bitucas. Parou, pensou, olhou o cinzeiro. Tentou lembrar como aquele objeto fora parar ali, mas não conseguia. Depois das três tinha um raciocínio lento. Voltou-se novamente para a chaleira e encheu-a de água quase até a boca. Procurou a caixa-de-fósforos nos bolsos de sua calça e não encontrou. Por um momento esqueceu que sempre a guardava no bolso esquerdo de suas camisas. Isso lhe causou uma tristeza que passou ao olhar o único fósforo não riscado da caixa. Riscou o palito solitário. Acendeu uma das bocas do fogão. Colocou a chaleira sobre o fogo. Olhava em sua volta. Não sabia exatamente o que olhava. Apenas olhava. Resolveu caminhar para o quarto e procurar o maço de cigarros. As luzes estavam apagadas. Sua visão não era boa, mas preferiu não acender as lâmpadas e contemplar as sombras que a luz do luar causava ao se deparar com alguns livros e outras parafernálias que já não tinham mais importância. Escutava o ranger das madeiras do corredor quando seus pés as encontravam. Abriu a grande porta velha de madeira ou porta de madeira velha. Tentou lembrar onde poderia ter colocado seus cigarros. Procurou na prateleira, na gaveta da cabeceira. Logo quanto pode se recordou que desde a época em que Mary Ann era viva escondia dentro do pé da cama, num orifício criado para este fim. Quando viva, Mary Ann detestava os cigarros de George, chegou a dizer que o abandonaria se encontrasse se quer uma cinza. Mary Ann nunca encontrou uma cinza, mas o abandonou devido a um tipo de gripe que o único médico da região não soube se de fato era uma gripe. Mesmo com sua ida, George não deixou o esconderijo. Preferia manter o hábito para se sentir próximo da companheira de longos anos. No maço ainda encontrava-se dois cigarros, um meio amassado e o outro lindo, esplêndido, ereto e intacto. Escolheu aquele que agradou a vista. Carregou-o consigo até a cozinha. Acendeu-o na boca do fogão. Deu a primeira tragada. Soltou a fumaça em direção ao teto. Tragou novamente e segurou até chegar à sala, onde a estava sua poltrona, companheira de anos. Companheira antes mesmo de Mary Ann entrar em sua vida. Soltou a fumaça, tossiu um pouco. Ao lado da poltrona estava um banco de madeira de três pernas que usava para apoiar seus pés. Era o único objeto jovem dentro da casa. George comprou-o depois de quebrar o antigo numa confusão causada pelo medo e pela pouca visão. Em uma noite fria, em que o vento entrando pela fresta da janela fazia barulho temeroso e os galhos da árvore batiam violentamente na parede, George confundiu um gato que andava em volta de sua casa com um ladrão e para se defender não pensou senão em lançar o banco velho de três pernas. O caso era recente, mas George às vezes esquecia. Assim como esqueceu naquele momento. Sentou na poltrona, puxou o banco. Acomodou as costas, acomodou os pés. Segurou o cigarro entre os dedos. Olhava para o nada. Tentava acabar com a agonia que o despertou às 3 horas da madrugada. Já não sabia o que ela era, não se lembrava. Olhou para as mãos bastante enrugadas. Olhou para o cigarro. As cinzas caiam. Mas não se preocupava com as cinzas, tão pouco se lembrava da água fervendo na chaleira. O cigarro foi a última imagem que viu.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Oito esfihas?

Era quinta-feira de manhã. O telefone tocou. Acordei desesperadamente. Corri em direção à sala. Quase chutei uma cadeira que estava em meu caminho. Atendi o aparelho. Uma ligação a cobrar! Enquanto a música chatinha tocava e a telefonista falava, tentei disfarçar minha voz de “acabei de acordar”. A telefonista se calou. Do outro lado da linha uma voz feminina dizia:

- Oi, Silmara? Anota aí para mim: “sete esfihas de carne e quato de frango”.

E eu, ainda meio tonta, não conseguia raciocinar direito, pois, como disse, eu acabara de acordar. Os números não faziam muito sentido. Então perguntei:

- Oito esfihas?

- Não sete.

- E quantas são de frango?

- Quatro. Quatro esfihas de frango e sete de carne. Olha, vou te ligar 8h40. Aí você me fala tudo isso que eu te disse.

Desliguei o telefone. Voltei para o meu quarto. Deitei na cama. Olhei para o teto e disse para mim mesma: “peraí, ela disse 8h40? Mas que horas são agora?” Olhei no celular, e lá marcava 8h15. Quando eu ia começar a ter pensamentos lógicos, o telefone tocou novamente. Mais uma vez ligação a cobrar. Do outro lado da linha a voz dizia:

- Silmara, coloca aí mais três de carne, tá?! Três de carne!

E desligou.

Voltei aos meus pensamentos lógicos. 8h15! Quem era o ser que me ligou às 8h15? E ainda durante minha última semana de férias? E pior: de madrugada, devido à maldita rinite, eu não consegui respirar direito e só peguei no sono quase 6h. E nos meus planos, eu tinha que acordar às 11h para me readaptar a acordar cedo. Entretanto, para isso ninguém – repito: NINGUÉM – pode me interromper, porque eu não consigo cumprir minha previsão e fico mal-humorada.

E quando virei para o lado, me cobrindo, pensei novamente: “caramba, esfiha?” É, esfiha! Mas por que raios alguém me acordar em uma quinta-feira, às 8h, na minha última semana de férias para falar de esfiha? Será que comecei a vender esfiha e nem estava sabendo?

Olhei novamente para o maldito telefone e coloquei-o em uma das 365624156 bolsas. Problema resolvido: se alguém tentasse me incomodar na minha última semana de férias, pelo menos não ia escutar o maldito aparelho tocar.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Faísca & eu

Desde pequena tenho medo de cachorro. Aliás, tenho medo de qualquer ser vivo que não seja da espécie humana, entretanto meu pavor é maior diante dos caninos. Tenho inúmeros motivos que explicam a minha fobia. O primeiro aconteceu há 17 anos, quando eu mal sabia falar e um cachorro da família - especificamente dos meus tios-avós - resolveu dar uma mordida em uma das minhas pequenas e finas pernas.

O segundo é o fato de que eu nunca tive um animal de estimação. Sempre quis ter, mas de acordo com minha mãe eu não consigo nem cuidar de mim direito, imagine então de um pobre e indefeso bichinho. A única vez que tive um bichinho em casa, ele morreu. Não! Eu não o matei. E acredite, o bicho era um cachorro. Eu tinha uns 6 anos. Eu e meus pais voltávamos do mercado e na garagem de casa um filhote vira-lata conseguiu entrar. Ele tremia. Meu pai achou que fosse frio, por isso colocou-o em uma caixa de papelão e no canto dela dois recipientes, um com água e outro com leite. Fomos dormir. Dia seguinte, quando acordei, fui ver como estava meu cãozinho. Ele estava do outro lado da rua morto. Faleceu durante a madrugada.

Enfim, há mais outras situações que colaboraram para minha aversão aos cachorros. E parece que quanto mais medo se tem, mais se atrai os caninos. E sempre foi assim, pelo menos comigo. Poderia falar aqui sobre as minhas quinhentas fugas para me proteger desses bichanos, mas prefiro contar apenas uma, que aconteceu hoje, nessa tarde de domingo.

Sem nada para fazer, resolvi ir a um parque que tem aqui perto de casa. Mas como de costume, eu consegui me perder - pois é; eu consigo me perder no meu próprio bairro. Entrei na rua errada, e logo avistei aquele bicho de quatro patas, marrom com manchas preta, pequeno. Disfarcei na medida do possível o meu medo. Acho que não deu certo, logo que passei perto do pequeno ser, ele começou a me seguir.

Comecei a andar em zigue-zague para ver se ele desistia de me seguir. Mas depois lembrei que esse negócio de andar em zigue-zague só funcionaria se eu estivesse perdida no pantanal e me deparasse com um jacaré. Logo não adiantou! O bichano não desistiu de me seguir. Eu parava, ele parava. Eu andava, ele andava. Eu ia para lado, ele ia para um lado.

Pensei: "bom já que vai ficar nisso, vou ficar quieta e sem chorar". Depois de dois minutos de caminhada, um pouco mais tranquila, olhei direito para o animalzinho, e constatei que era uma fêmea. Sei lá por que razão, mas me tranquilizei um pouco.

Na metade do caminho, quando comecei a reconhecer o local, um bêbado parou e me perguntou: "esse cachorro morde". E respondi que não sabia; que não era meu. E o bêbado me aconselhou tomar cuidado.

Adiante, olhei para cima e vi um dos prédios que é vizinho ao parque. Percebi que era só virar à direita e pronto: chegava à rua do parque. E a cachorrinha ainda me seguia. Eu andava olhando para ela, para garantir que não iria ganhar uma nova mordida na perna.

As vezes ela andava muito próximo a mim. Mas percebi que quando eu parava bruscamente, ela se assustava e se afastava. Foi então que pelo menos 45% de mim se sentiu menos ameaçada, afinal éramos duas medrosas caminhando. Nessa hora pensei que já que ela ia me acompanhar, eu deveria dar um nome temporário a ela. Escolhi Faísca.

Avistei o parque. Fiquei feliz! Entrei lá, mas Faísca não. Ela deve ser um desses cachorros do bairro e por isso já aprendeu que cachorro sem coleira não pode colocar as patinhas lá dentro. Não deu tempo de me despedir. Uns garotos, sentados na calçada, chamaram-na.

Caminhei durante uns vinte minutos no local, pensando na Faísca e em outras coisas como o fato de que eu não sabia que existia uma pequena trilha graciosa no parque. Depois novamente encontrei o lugar pelo qual entrara. Virei a esquerda rumo a minha casa, tranquilamente. Um minuto depois quem aparece? Sim, Faísca!

E me acompanhou até o portão de casa. Naquele mesmo esquema, eu observando-a. Pausando algumas vezes bruscamente para ela não se aproximar muito. Continuei fingindo que não tinha e medo. E finalmente cheguei em casa. Novamente Faísca percebeu que não poderia entrar. E seguiu reto.

sábado, 17 de janeiro de 2009

A noveleira

Faz tempo que não escrevo no meu humilde e singelo blog, Vida Errada. Mas é que quando chegam as férias da faculdade, eu também gosto de tirar férias da internet (claro, o fato de eu ter tendinite contribui com o meu descanso cibernético). E nesse período eu costumo fazer coisas que não me são habitual, como assistir novela.

É, fazia um bom tempo que não as assistia, cerca de 3 anos. O máximo de teledramaturgia que acompanhei nesses últimos tempos eram os episódios de "Malhação", mas nunca fielmente. Este ato aconteceu apenas por três motivos:

1- De segunda e quarta tenho curso de francês na própria universidade após as aulas. Logo não compensa voltar para casa e, em seguida, retornar. É bem mais prático ficar em um dos quinhentos Diretórios Acadêmicos e esperar o tempo passar, deitar no sofá e assistir televisão. Entretanto, ao chegar nos DAs, a única opção era assistir à novela pré-adolescente, pois alguém muito esperto (ou não) escondeu o controle e deixou no canal.

2- Não importa há quanto tempo você deixou de acompanhar aos episódios, a história sempre é a mesma, e por isso você sempre estará a par do enredo.

3- Quando eu chegava em casa mais cedo, seja lá por motivos cósmicos ou femininos, ou o que for, meu dedo sempre apertava às 18h o número do canal da emissora.

Enfim, fora a série-novela, não acompanhava há um bom tempo a teledramaturgia. Mas nessas férias assisti a um episódio de "A Favorita". O pior é que gostei! Lembro que naquele dia a vilã Flora tentava matar o extremamente rico Gonçalo com um plano digno de filme de terror trash, mas que deu certo. E no momento pensei: "bem, a novela está quase no fim, e quando as aulas começarem, já terá passado o último capítulo. Logo, posso me render à trama". E me rendi.

Voltei por um período a ser noveleira. Eu lia críticas dos jornais. Algumas vezes assistia aos programas da tarde que discutiam por mais de uma hora o comportamento da personagem da Patrícia Pillar e os possíveis finais bizarros da trama. E até aprendi a cantar trechos de "Beijinho Doce".

Ontem, quando acordei, contava as horas para ver qual era o destino de Donatela, Flora e Silveirinha, o mordomo medonho. Mas cheguei em casa um pouco tarde. Mais cedo tinha encontrado alguns amigos e esqueci-me do tempo. E quando vi que horas eram, a Avenida Paulista inteira pode observar uma louca, impaciente, brigando com o guarda-chuva, que insistia em voar, rezando para não levar um tombo e tentando chegar em casa o mais rápido possível.

Quando cheguei ao meu apartamento, a primeira coisa que fiz foi perguntar "e aí, mãe, o que aconteceu com a Flora?" Quando minha mãe respondeu, fiquei inconformada. Como assim, numa novela que todo mundo morre devido à vilã mais medonha na história da teledramaturgia brasileira, com um mordomo tenebroso e uma heroína ao estilo She-ra, quem dá o tiro final é a personagem mais mimada e que nunca segurou uma arma? É por isso que não quero mais assistir novelas.